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Envelhecimento e Sexualidade: mitos, preconceitos e diferenças de gênero

A vida sexual de pessoas idosas ainda se configura em um tema polêmico, geralmente cercado de preconceitos, fato este que pode ser atribuído à ideia equivocada de que a atividade sexual é algo que não faz parte do repertório de interesse das pessoas mais velhas. Apesar do importante e acelerado processo de crescimento da população idosa, essas pessoas frequentemente se deparam com seus direitos desrespeitados, incluindo o de exercer sua atividade sexual, visto que manifestações eróticas dos mais velhos são muitas vezes consideradas imorais e até patológicas (Bohórquez Carvajal, 2008).


O ser humano, diferente das outras espécies animais, está livre de um mecanismo biológico que imponha ciclos para a sua atividade erótica (Abdo, 2004). Historicamente, no entanto, a sexualidade sempre foi muito vinculada à reprodução, como afirma Foucault (1977, p. 9): “o casal, legítimo e procriador, dita a lei”. Dessa forma, de acordo com Gozzo et al. (2000), até pouco tempo, o ato sexual sem objetivo de procriação era considerado algo pecaminoso que deveria ser reprimido. Nas culturas pré-modernas havia grande pressão para que se constituíssem famílias grandes (Giddens, 1993). Ter maior quantidade de filhos significava mais mão de obra disponível, o que se mostrava bastante positivo para o desenvolvimento capitalista do Ocidente e, dessa forma, podia induzir à repressão social da atividade sexual não reprodutiva (Zampieri, 2004). Dessa forma, a atividade sexual deixou de ser uma questão privada e passou a ser uma questão pública. Nesse período se vinculava a vida sexual à reprodução, e qualquer forma de atividade sexual que não fosse para esse fim era tratada com repulsa, tanto pela Igreja quanto pela medicina. Nossa civilização, impregnada por esses valores, ainda hoje tem dificuldade para entender o sexo como mero objeto de prazer e, por essa razão, ainda o trata, em muitas ocasiões, como um assunto vergonhoso (Abdo, 2004). É possível que se construa nessa relação o interesse pelo ato sexual associado apenas ao período fértil do ciclo vital, ou seja, na fase mais jovem do desenvolvimento, levando à construção equivocada da ideia de que, com o envelhecimento, o impulso sexual deixa de fazer parte do repertório de vida do ser humano (Rodrigues, 2010).


Segundo Abdo (2004), “toda atividade sexual que não contemple a procriação (como, por exemplo, a masturbação, as relações homossexuais, o erotismo puro) tem sido muitas vezes considerada anômala por diferentes civilizações” (Abdo, 2004). O sexo entre pessoas idosas poderia ser incluído nessa lista de relações “proibidas” pois, em geral, a atividade sexual nessa faixa etária não tem como objetivo a procriação, e sim o prazer erótico.


Os recortes raciais, geográficos, etários, culturais e de gênero são de grande importância ao se lidar com a velhice. As questões de gênero e idade são particularmente relevantes na discussão da atividade sexual entre pessoas idosas. Ser homem ou ser mulher, em dado período, vai ter grande influência no desenvolvimento da vida sexual. Num tempo recente da história do Brasil, entre o final do século XIX e início do século XX, em relação aos homens, as mulheres ainda viviam uma situação social inferior no que se referia aos seus direitos. No âmbito legal, eram comparadas a outros grupos que necessitavam ser tutelados, como loucos, menores e interditos (Engel, 2009). Incluem-se nessa desigualdade de gênero os direitos à vida sexual.


Os ensinamentos sobre o sexo e os valores culturais que a ele são dados apresentam diferenças entre as gerações, da mesma forma que determinados padrões de comportamento esperados, para homens e mulheres, são socialmente cobrados dos indivíduos. Sendo assim, para uma adequada abordagem da vida sexual das pessoas idosas é preciso antes compreender e contextualizar sua infância e juventude, de forma a entender a quais regras sociais e morais foram submetidas, e como apreenderam esses valores. É fundamental procurar entender as diferenças de gênero que se constroem durante a vida para que se faça uma reflexão da função sexual na velhice. Feminino e masculino assumem suas posturas de acordo com cada cultura e a reflexão sobre gênero e suas diferenças levam a uma construção com base na perspectiva relacional entre um e outro.


Em nossa cultura, os atuais idosos tiveram influência de um período em que fazia parte do universo masculino a vida pública, através das relações de trabalho. Ao universo feminino era reservada a vida privada, as atividades domésticas e o cuidado à família. O homem era o provedor econômico e a mulher, a provedora de afeto (Rodrigues, 2006; Trindade e Bruns, 2007; Bruns, 2010). Esse universo heterogêneo era caracterizado por algumas particularidades que ainda se fazem presentes: ao nascer um menino, os pais referem-se a ele como “meu garotão”, e a menina como “minha princesinha”, embutindo aí um modelo de força masculina, e fragilidade feminina. Rampin e Freitas (2012) ressaltam que as mulheres passam por um processo de estigmatização desde a infância, sendo submetidas a valores considerados femininos, como o modo de se vestir, as cores a serem escolhidas e posturas sociais esperadas, num processo inferiorizado em relação ao homem. Esses códigos sociais apontam para a diferença de papeis que irão se estruturar ao longo da vida (incluindo a velhice) para além das diferenças biológicas.


O corpo também sofre mudanças durante o desenvolvimento, com fenômenos distintos a cada sexo. A menopausa e, consequentemente a impossibilidade de procriar, representam marcos importantes para as mulheres, sinalizando de certa forma a chegada da velhice. Para os homens, que podem continuar procriando, surge o fantasma da impotência sexual (Paschoal, 2006). Para as mulheres essa época coincide com a saída dos filhos de casa, o que pode significar solidão e perda de sentido em suas atividades à medida que não terão mais de quem cuidar. Já para os homens, tal período tende a coincidir com a aposentadoria, que da mesma forma, retira o sentido de reconhecimento social do seu papel masculino. (Lorenzi et. al, 2006; Rodrigues, 2006).


Deve-se ressaltar a diferença conceitual entre sexo e gênero, com o primeiro totalmente associado às diferenças determinadas pelo corpo e o segundo, aos significados atribuídos ao fato de ser homem ou mulher em cada cultura e em cada pessoa (Zampieri, 2004). São esses valores atribuídos aos papeis masculino ou feminino que vão interferir também na forma como cada um, em cada cultura e em cada período histórico, constroi a sua sexualidade. É por meio dessa construção social que em determinado momento se vinculou a atividade sexual à reprodução, e não ao prazer erótico. Segundo Paiva et al. (2008), grupos aos quais as pessoas pertencem, entre eles a família ou os espaços religiosos, são determinantes na forma como se criam diferentes valores e normas em relação à atividade sexual.


Imagem: freepik.com

No século XX ocorreram mudanças sociais que, de certa forma, interferiram significativamente na vida sexual das pessoas. A chegada dos anticoncepcionais representou um avanço na direção de separar a reprodução da atividade sexual. A concepção passou a ser prevenida de forma artificial, sendo possível que se tivesse uma vida sexual livre do medo de uma gravidez indesejada e, dessa forma, a mulher tomou como seu o prazer sexual, antes domínio exclusivo dos homens (Bruns, 2010). Mais tarde ocorreu o contrário, com o advento da fertilização in vitro foi possível que a concepção ocorresse de forma artificial. Dessa forma, tanto a contracepção quanto a reprodução passaram a não depender mais da atividade sexual, assegurando de vez ao indivíduo a propriedade da sua vida sexual (Giddens, 1993).


A população idosa atual é uma geração que ainda traz impregnada em seus valores muito daquilo que teve como aprendizado sexual na sua juventude. Traz consigo toda a carga de valores sociais, morais e religiosos acerca da sua atividade sexual, no papel de homem ou mulher. Todas essas mudanças ocorridas em meados do século XX trouxeram grandes vantagens, em especial às mulheres, que viram as novas tecnologias médicas liberando-as para o prazer sexual sem a necessidade da procriação, tendo no divórcio também um aliado e abrindo a possibilidade de escolha de um novo parceiro. Ainda com todas essas mudanças importantes, a literatura indica que as mulheres ainda continuam a dar mais importância à sua vida sexual no que se refere aos problemas relacionais do que à atividade sexual propriamente dita (Rohden e Russo, 2011), principalmente as mulheres mais idosas.


Com o advento da AIDS nos anos 1980, outras mudanças afetaram a atividade sexual das pessoas no século XX. O prazer sexual passou a ser considerado um risco. O conceito de monogamia voltou a ter força, e o uso de preservativos como forma de sexo seguro ganhou notoriedade. A abstinência sexual, que nos períodos anteriores foi incentivada para a contracepção, passava agora a ser considerada por alguns setores religiosos como uma forma de prevenção das DST (Figueiredo, 1998; Paiva et al., 2002). De lá até os dias atuais, as pessoas idosas nunca foram o foco de atenção na prevenção da AIDS e outras DST, embora o Boletim Epidemiológico de 2008 tenha incluído em sua publicação um bloco temático para casos de AIDS em pessoas com 50 anos ou mais (Ministério da Saúde, 2008). Analisando os dados mais recentes, e com recorte etário de pessoas com 60 anos e mais, o Boletim Epidemiológico 2011 mostra 13.414 casos de AIDS notificados de 1980 a junho de 2011, representando 2,6% da população total. Desse contingente, 34% dos casos se deram entre as mulheres e 66% entre os homens.


Isso aponta para a necessidade de se observar que o comportamento sexual da população idosa também vem se transformando. O conceito de sexo apenas para a procriação, e o mito do idoso assexuado, vão ficando para trás, e o que se percebe no cenário atual, principalmente após a chegada dos medicamentos para a disfunção erétil, são idosos com uma vida sexual cada vez mais ativa. Isso é preocupante na medida em que esse segmento da população não teve incorporado aos seus hábitos o uso de preservativos ou qualquer outro tipo de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis (Gorinchteyn, 2010). A literatura mostra que o uso dessas medicações tem se mostrado um fator associado à transmissão do HIV em homens que apresentam disfunção erétil, mas ainda são poucos os estudos que investigam o impacto desse tipo de medicamento com a contaminação em homens mais velhos (Driemeier, 2012).


Da mesma forma, embora no Brasil o Ministério da Saúde realize campanhas nacionais relacionadas à temática, a abordagem acerca da atividade sexual da pessoa idosa como vulnerável à contaminação pelo HIV ainda é feita de forma muito tímida, provavelmente por considerar a atividade sexual nessa idade como tabu e apontando para a dessexualização da velhice (Sousa, 2008). As campanhas de prevenção são geralmente veiculadas ao público mais jovem e em fase reprodutiva (Oliveira et al., 2008). Mesmo o programa de promoção do envelhecimento saudável e ativo preconizado pelos Planos de Ação de Envelhecimento de Viena e Madri, não mencionam os cuidados e esclarecimentos necessários a uma boa saúde sexual da pessoa idosa, contribuindo para a manutenção do estereótipo da velhice assexuada, a partir do princípio de que idosos são pessoas de baixo risco para a contaminação pelas doenças sexualmente transmissíveis (Zornitta, 2008).


Esses fatos mostram que há pouca preocupação em relação à atividade sexual na velhice, na medida em que se acredita que com o passar dos anos, o interesse pela vida sexual desaparece, porém, sabe-se que a sexualidade faz parte da vida humana durante toda a vida (Gir et al., 2000). Sendo assim, uma pessoa teria condições de manter uma vida sexual ativa até o final da sua vida, mas não é isso o que acontece com boa parcela da população idosa, afinal, apesar de inata ao ser humano, a atividade sexual sofre interferências externas referentes a aspectos sociais, psicológicos e religiosos, entre outros (Fernandez et al., 2005).


Com base no mito da velhice assexuada, o homem idoso que exerce a atividade sexual é considerado “tarado”, enquanto que a mulher idosa que pratique o ato sexual é julgada “assanhada” (Büchele et al., 2006). Sob o mesmo aspecto Negreiros (2004) afirma que “com medo de ser tornar ridícula, para fugir do estigma de ‘velha assanhada’ a idosa adota, em geral, uma postura discreta”. Ainda Gomes et al. (2008) observam o mesmo ao afirmarem que a vida sexual de pessoas idosas é um tema pouco abordado, e que a fala médico-psicológica sobre o assunto costuma ser de forma deserotizada e antierótica. Palacios-Ceña (2012) também observa que embora a atividade sexual contribua para o bem-estar geral, costuma ser negligenciada quando se trata de pessoas idosas. Estes exemplos citados na literatura acadêmica nos mostram que, infelizmente, as pessoas mais velhas que demonstram exercer livremente a sua vida sexual ainda são classificadas por rótulos negativos e pejorativos, tanto em seu meio de contato social, quanto pelos espaços de atenção à saúde e assistência.


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